Todos nós levamos o dia a deambular numa certa anestesia societal, a cumprir muitas das nossas metas individuais, a responder aos pedidos laborais, a responder às necessidades financeiras familiares, às necessidades emocionais dos que nos rodeiam, a tentar ser BOM, EFICAZ, COMPETENTE, MELHOR...
Levamos dias, nas suas horas e minutos a existir, em resposta, em reacção a estímulos imperceptíveis, exigentes, contidos em janelas de tempo apertadas e sob grande pressão.
Vivemos sem reflexão atempada ou um saboreamento das nuances da Vida. Mas vivemos em momentos de grande angústia quando nos confrontamos com o nosso eu, na solidão do dia que acaba.
Quando me deito, torno-me quase perfeita. Sonho na mãe que podia ou devia ser, sabendo de cor o que fazer. Vejo-me paciente, tolerante, brincalhona, sorridente, exigente, educadora, mas tudo na medida certa, vejo-me sapiente do conhecimento necessário para ser o melhor de mim nessa função. Mas nessa altura os meus estímulos infantis, dormem, descansam e adoptam em si mesmos, o rosto de anjos que não me desafiam e fazem apenas jorrar de mim todo o amor que lhes tenho, sem nenhum rancor, em paz.
Tantas vezes, n vezes, tal sentimento me levanta da cama...só para os ir ver, aconchegar, beijar no rosto...move-me a culpa de não ter conseguido ser essa versão de mim mesma, defraudada pela impaciência que a Vida faz ebulir dentro de mim. Talvez movida por uma vida de desgaste temporal, que só de vez em quando me liberta para que me aproxime dessa versão aprimorada.
Sonho em ter uma vida em que o tempo se parte, e eu posso ser mulher, companheira, mãe, filha e profissional, com janelas distribuídas de forma justa, sentida, em espelho do que quero e de quem sou, para que veja essa minha essência, para que ela se revele e eu a sinta nos sorrisos que causo. Quero ser mesmo essa. Mesmo!
Quantas vezes no tecto do meu quarto se projectam slides das tarefas que não consegui cumprir no trabalho, das metas pessoais que me movem nessas áreas e que me fazem querer dar mais de mim, mas sentir que não me chego.
Quantas vezes me perco nessas listas começando a confundir-me com todos os outros projectos que tenho para a minha casa, aquele espaço que batalho para fazer lar a toda a hora e minuto, num trabalho continuado, ingrato porque se recomeça a si mesmo, sem sequer nunca ter findado. Nesses momentos lembro-me que mesmo depois de aspirar a casa duas ou três vezes no mesmo dia, às vezes a casa mostra-me que não atinge perfeição. Poderia refugiar-me em dizer que é uma casa vivida, cheia de amor, podia! Mas, no fundo, batalho também por querer saber equilibrar esse viver doméstico, com graus e parâmetros de exigência que defini dentro de mim e que me fazem sentir sempre uma versão defraudada de mim mesma.
Deitamos-nos idealizando mudanças de dia seguinte, alavancadas em motivações interiores que à noite ganham forma e espaço, pela paz interior, pela tranquilidade com que conseguimos estar connosco mesmos.
Nessa reflexão um pouco mais sintonizada com a nossa essência em concordância com os nossos sonhos mais pessoais. Nessas instâncias sonhamos acordados e conseguimos desenhar caminhos que nos fazem sentido e criamos espaço para eles dentro das nossas realidades. Mas, os amanhãs trazem a doença do tempo, de pirâmides de prioridades que nos são impostas pelo improviso que a Vida é e, às vezes, rapidamente nos desorientamos relativamente às nossas resoluções, porque novos incêndios se revelam e nós, que tal bombeiros, vamos ao combate de forma instintiva, mecânica...porque a vida já nos amestrou.
Penso a essas horas, nas horas da noite...acordar a malta toda para lhes dizer quanto gosto deles, quanto são importantes para mim, não vá ser este o meu último dia, mas depois desperto-me pensando anestesiada que não há mal, pois amanhã o mais certo é eu estar cá e conseguir recomeçar estes meus jogos de malabarismo entre versões de mim mesma que se forçam a coexistir, em lutas tirânicas que penso resultarem num eu que um dia, talvez um dia, seja realmente a melhor versão de mim num "upgrade" humano mais próximo do ser que eu julgo coabitar comigo.
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