quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Perda e luto, a dor que não tem sossego...

Não há dor mais aguda, mais dilacerante, mais solitária do que a dor da perda, da saudade que ganha o peso eterno, da saudade do que não foi, da ausência que passa a dilacerar, que enjoa, desnorteia e deixa alguma cegueira de amanhãs.

Não há dor mais só, mais negra, mais vazia, sem preparo, sem aviso, sem rede...

É desconcertante lidar com o não estar lá, com o não poder dizer nada, com o mutismo que nos sobra entre mãos, pois não há a quem dizer. E nesses momentos surgem todas as coisas que não se disseram, as que se disseram mal e as que eternamente saberemos de cor, porque se disseram e fizeram bem.

O luto é uma saudade desarrumada, uma ferida que demora a cicatrizar e que abomina a
palavra que a cura. 

Não há nada pior do que saber que a única coisa que alivia este processo é o TEMPO, pois é na perda que se percebe a dimensão do tempo que não chega, o que não passa e a falta de fé e esperança no conceito global que o tempo deve ter.

Na perda eu não quero sentir o tempo. Eu não quero viver o tempo. Porque a saudade tem cheiro, tem nome, tem histórias e sentires.

Somos animais de fé e esperança, somos entidades que lutam diariamente com a sua noção de fim, mas acima de tudo que lutam por se afastarem do medo de perder de quem se gosta. Tememos a finitude do que é alheio a nós e para suportar essa
dor antecipada vivemos como se donos do tempo fossemos, fugindo à crença de que o tempo por cá é finito. E este jogo de "pseudo" ignorância assegura-nos o alívio de não sentir um medo diário de perder.

Mas a vida de vez em quando, dentro do que é perfeitamente normal, ceifa e leva-nos das mãos, do olhar, da proximidade, os que amamos, aqueles de quem não suportamos distância e ausência.

Nesse ceifar, encontramos-nos destruídos de dentro a tentar dar sentido ao que
aconteceu, na revolta de aparentemente ter de continuar, morrendo de desgosto egoísta pela ausência, morrendo de medo de partir ou de perder quem está à volta. 

Na morte, no luto, na saudade, no desespero, olhamos à vida e queríamos ou precisávamos de pôr todos os que amamos a seguro e acreditar por alguns momentos, para que tudo isto não fosse insuportável, de que não vai haver mais perdas.

Nestes momentos fazemos as rotinas para sobreviver mas percebemos que ou estamos anestesiados ou, as rotinas relembram o outro e a dor do não estar lá. No luto, na perda, as palavras ferem, pois ao espreitar da esquina as palavras têm lembranças e estão gastas demais para aliviar.

Na dor circular destes afectos mais negros, ficamos descalços, vazios de bolsos, nada lá temos que nos agarre ou empurre. Há segundos eternos e semanas ausentes...não há tempo e afinal dizem que ele cura. Nestes momentos não queremos ensaios sobre o tempo e toda a sua ajuda, nestes momentos não queremos luz ou paz, queremos um veículo para a revolta, um abraço que aperta e não dá espaço para dúvidas. Não queremos sons, precisamos de gestos. Precisamos de quem tome controle e nos arraste nessa passagem anestesiada.

Nessas dores fundas de alma, precisamos de aprender a respirar e precisamos de ter alguém ao nosso lado que nos lembre de respirar. Precisamos de ter quem passe o tempo connosco a adivinhar o que é preciso. Precisamos de saber que temos quem respire connosco, quem esteja, quem olhe por nós. 

Só isso, sem palavras, em silêncios cuidadosos que se fazem chegar através do colo velado o amor que cura e ajuda a passar esse tal tempo. Precisamos de sentir as asas quentes, enormes e suaves que os que nos amam estendem em nosso redor, para saber sentir que estamos vivos e saber que alguma coisa algures num tempo que ainda não chegou, nos vai fazer sair daqui, deste lugar negro onde ficamos e que não prevemos.

E num dia, que não se mede, que não se vê chegar ou que não se espera, o tempo, a família, os amigos, o amor, os afectos, os silêncios, os abraços, as asas e as lembranças, fizeram o seu trabalho, agiram sobre a dor, e um dia é mais fácil. 

E um dia vai sendo mais fácil, voltamos a respirar sozinhos. E voltamos a acreditar que se sobrevive a dores assim, podendo saborear uma saudade boa, podendo recordar sem chorar, podendo ter presente, numa ausência eterna.


Com um xi-coração para uma amiga que perdeu...

quarta-feira, 8 de março de 2017

Mulher! Dou-me o direito...de ser quem sou.

Bom dia mulheres, bons dias a nós entidades femininas, seres diferentes dos restantes, únicas no nosso desenho.

Tantas palavras e conjuntos de sílabas podemos nós utilizar para tentar captar ou homenagear este ser. Tanta tinta e fotografia surge a criar um vislumbre sobre a beleza desse mundo. Tanta publicidade e lutas se geram para defender algo que devia ter sido sempre inerente à nossa definição, mas desde todo esse sempre insistem em de alguma maneira defraudar esse espaço, único, mas no entanto igual.

Porque será que nos denominaram de sexo fraco?

Porque será que em pleno século XXI ainda temos homens em lugares de destaque a defender que devemos ser menos pagas porque somos mais estúpidas?...porque será que é necessário, numa sociedade supostamente evoluída ainda ter de defender a nossa potencialidade, a nossa virtude, a nossa capacidade, a nossa competência?

Porque será que ainda hoje se observam discrepâncias nos salários entre homens e mulheres que desempenham os mesmo papéis?

Porque será que ainda hoje as mulheres têm de ter medo em muitas das situações dos seus dia-a-dia?

Porque será que temos de ser apelidadas com adjectivos muito feios pela forma como nos comportamos ou vestimos?

Porque será que muitas de nós têm de provar que conseguem ter trabalho ou carreira, mas no entanto, acumular um outro trabalho para dentro das portas do ninho?

Porque será que temos de nos esforçar assim tanto?

Porque será?

O Homem é um ser grandioso, brutal, magnífico. O homem é um ser extraordinário, imenso, sem dúvidas...e este meu texto não tenta de forma nenhuma diminuir o quão especial os homens são ou as imensas capacidades e características que os compõem. Mas sim, vem destacar e reconhecer o sexo feminino e as suas lutas. O sexo feminino e as suas múltiplas belezas.

Hoje homenageio todas as mulheres. Todas sem excepção, por todas as suas lutas e características, por todos os seus pormenores e complexidades, por toda a sua simplicidade e fantasia. Por toda a sua magia e a sua força. Por todas as suas lágrimas e capacidade de amar. Por toda a sua inteligência e sensibilidade. Por todos os seus defeitos e virtudes, por todas as suas dores, por todas as suas derrotas, por todos os seus desejos de continuar, de seguir, de dar mais e melhor.

Hoje enalteço este ser. Este grupo. Esta essência e este tipo de alma.

Hoje o dia é nosso. Hoje o dia é grande e merecido, porque hoje todos nós, toda a humanidade, todo o Homem e homens devem parar para pensar no papel destas entidades, destas criaturas que circulam entre todos e, em muitos dos seus gestos deixam marcas indeléveis no percurso de uma história que já se mostra longa.

Hoje grito em palavras escritas o orgulho que tenho em ser mulher, em conhecer grandes mulheres e em perceber quem somos e o que nos compõe.

Hoje tentarei de forma muito modesta dedicar o meu discorrer a nós, mulheres guerreiras de lutas imensas, no viver dos nossos dia-a-dia.

Na minha opinião não há que lutar pela igualdade de ser, eu não quero ser igual, eu orgulho-me de ser diferente, de não ver da mesma maneira, de não sentir da mesma maneira, de não descrever as coisas ou falar da mesma maneira, eu orgulho-me de ser capaz de parir e de ter seios, de chorar com facilidade, de não ter a mesma força física, eu orgulho-me de tudo o que me torna diferente. Mas no meio de toda essa diferença respeito-me e a todas nós de tal maneira que não entendo a diferença no tratamento, nos direitos, no acesso, nas escolhas...

Eu admiro-nos pela forma pragmática com que encaixamos contos de fadas nos dias mundanos, sem com isso sermos princesas. Admiro a capacidade de algumas de nós de fazer em saltos altos uma luta de dragões.

Admiro a nossa capacidade de investirmos em nós a aprimorar a obra de arte que somos, vestidas ou despidas, com mais ou menos peso. Adoro ver como uma mulher amada e feliz, brilha na sua beleza. Adoro ver a beleza de um sorriso de uma mãe, quando secretamente vê o seu filho ou pensa em quem ama.


Adoro a beleza do nosso corpo, das nossas estrias, do peso dos nossos seios que amamentaram os frutos do nosso ventre. 

Admiro as de nós que optam por não serem mães ou as que tentaram e não conseguiram. Admiro a carapaça, a armadura, a robustez do nosso físico e da nossa resposta à dor. Adoro a fragilidade da pele, do tremer, do arrepiar, através das emoções que trespassam o coração.

Adoro a nossa capacidade de chorar sem saber porquê, ou de chorar a alma em silêncio. Admiro a nossa vontade férrea, a nossa obstinação e dedicação.
Adoro o tamanho do nosso coração...o calor das nossas mãos nos abraços que damos. Respeito a nossa capacidade de dar, de voltar a tentar, de não desistir...de lutar de braços caídos.

Admiro a nossa capacidade de nos darmos o direito de sermos quem somos, num orgulho de género.

Adoro a nossa capacidade de serenidade, em erupção emocional...o nosso amor filial, de companheira, de amiga, de filha e de mãe.

Adoro o nosso retrato de Evas e de Marias, num quadro combinado entre o pecado e a tentação e a pureza de ser.

Orgulho-me de ser...

Orgulho-me de ser mulher e das mulheres. Orgulho-me da nossa luta, do nosso equilíbrio, da nossa força...dos nossos erros, dos nossos perdões, das nossas vergonhas.Orgulho-me da nossa pele, dos nossos beijos, dos nossos afectos e irreverências.

Hoje é dia de reflectir, celebrar, viver, amar...hoje é um dia grande, sensível, gingantescamente discreto. Só nosso, porque não é dia para ser celebrado por quem não nos vive igualmente diferentes.

Hoje é dia mundial da beleza de ser, da enormidade do amor, da riqueza de sentir e dar.

Hoje é dia da tempestade em águas profundamente serenas.

Hoje é dia da princesa guerreira criança mulher. Hoje é um dia diferente, só nosso, de orgulho mundial. Hoje é dia de medalhas de ouro e taças mundiais.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Na procura de...

Somos todos desconhecidos, todos caminhantes errantes à procura de sentido. Somos todos uma expectativa para alguém e para nós mesmos, nunca sendo uma realidade, porque nos gerimos por bitolas onde na realidade tentamos encaixar toda a gente, sem abrir espaço para um real entendimento do outro. Somos animais de percepção e adivinhação, para que nada fique sem sentido. E quanto mais necessitamos desse entendimento, mais desconhecemos o outro.

Somos seres de relação, mas a interpretação constante que fazemos do outro inibe-nos de ver, de deixar as coisas serem uma verdade mais próxima do absoluto. Queremos categorizar, porque supostamente nos facilita a vida, e porque chegamos à paz que pode derivar do entendimento do que nos rodeia, de quem nos rodeia. Mas no fundo, essa necessidade de ver, de ir além, de interpretar, afasta-nos do conhecimento do outro na sua essência. 

A busca de sentido pode ser não só consumidora de energias, mas também, inibidora de revelações. Não devemos nunca dizer aos outros quem são, mas sim beber deles em toda a sua verdade, por gestos, palavras, sentimentos e criar a real empatia de os entender vindo de onde eles estão e não de onde eu acho que.

Um conceito tão simples como o de "mesa" evoca em nós a sabedoria do que uma mesa é, mas se nos limitássemos a conhecer apenas um tipo de mesa, todas as outras ficariam fora da definição, ou se ao contrário agíssemos, assumindo só porque é uma mesa, ainda que diferente de todas as que eu vi, teria de ir para a caixinha onde arrumo todas as mesas, perderia a capacidade de ver tudo o que aquela mesa é, para além de mesa ser.

Se um conceito tão simples pode fazer-nos "ver" ou "não ver", diferentes coisas, imaginem o que fazemos nós ao tentar categorizar os outros, arrumando-os dentro das nossas áreas de organização. Tanto que se perde em abono do pseudo-entendimento da vida ou dos outros.

O ser humano é uma entidade que pode ser básica em algumas coisas e até previsível em alguns comportamentos. Pode ter ciclos semelhantes, comunicar usando expressões iguais, pode tornar-se conhecido aos nossos sentidos, mas todos os dias eu me deixo entrar na magia de perceber as unicidades de cada um, tornando-os um património único, digno de visita guiada pela mão do próprio, como se estivéssemos a descobrir as várias cavernas de uma gruta e a cada visita fossemos percebendo que dentro de cada um, há descobertas inimagináveis. Labirintos sem fim, conectados ou não, que nos levam às diferentes faces do eu da pessoa que nos está a permitir a entrada no seu templo, através das suas múltiplas entregas.

Tenho vindo a descobrir que a maior parte das pessoas vagueia no meio de outras, ávidas desse conhecimento, mas em caminhadas distraídas pelo seu ponto de referência dentro de si mesmos. São entes passeando, sem na maior parte das vezes uma verdadeira dedicação a querer saber o outro, porque na angústia do desconhecimento preenchem-se esses vazios teóricos com dados do próprio. Sendo raras as que assim não fazem...

Posso garantir-vos que é uma viagem linda, se nos deixarmos ir ao encontro de quem o outro é, sem preconceitos, teorias e expectativas...porque se consegue ver toda a sua essência interior sem sombras do mundo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

É escuro o sofrimento...

No sofrimento não há companhia, não há cheiros bons, não há nada que toque, porque tudo dói. Há uma entrega total à posse de nós por esse sentir, que amargura, que dilacera, que corta de dentro a carne, num lento respirar de quem acha que já não aguenta.

Há uma solidão entranhada de uma incompreensão pela distância imposta de não conseguirmos existir uns dentro dos outros. A verdade de quem sofre não é medida pelo outro, mas sim pelo próprio, numa comparação com dores prévias e na luta com a presença ou ausência de algo chamado fé.

O sofrimento é negro e não anda de mão dada, rejeita, atormenta, isola e perfura. Enche o pensar de frases feitas, desconectas e acutilantes, que se repetem e remoem em si mesmas, numa loucura mais que insana, sedutora da dor e de um sadismo profundo sobre o nosso próprio penar.

Sofrer é fodido, é tramado, é lixado, é só. Sofrer é incompreender.

É perder tudo, não saber nada...é ir tão fundo que não se sente. É não ver, não sentir, não dar, não receber. É desligar constante, rumos de vento. É cicatriz em vez de eu, é sentir desprovido de interpretação. Não se quer histórias porque se sabe os fins. Não se quer fantasia, porque se perde a meninice. Não se quer afago porque não chega. Não se quer nada, exigindo um punhado de tudo, de uma Vida que se revela estranha e ingrata. É ignorância e relutância. É uma eterna impaciência porque o tempo, oh o tempo, esse deixou de ser amigo e permanece em luta de fuga, num tic-tac enervante.

O sofrimento leva a loucuras e à loucura, à perda do eu, da identidade, da vontade. Leva ao cansaço de não acreditar. Escorre pela pele e transforma. Cria inércia, seda, amortece num cansaço profundo que se transforma em estar, que anestesia e se define como ser. É tão dorido que tira o ar, que dói no corpo, que apaga a chama, que massacra o coração. É tão dorido que é dor contínua, tão profundo que não tem cor.

Todos os dias, nem um falha, vejo pessoas em profundo sofrer, algumas já doentes, outras ainda numa batalha sã. E todos os dias digo a mim mesma, relembro-me, que tenho de aprender a perceber este sentir que nos faz ser sombras de nós mesmos.

Todos os dias me digo que tenho de batalhar por ensinar a respeitar a gravidade de tal sentir. Todos os dias travo batalhas com este inimigo invisível, que ninguém quer assumir e dar espaço a, mas que na realidade é um invasor, parasita, usurpador. Todos os dias trabalho com ele, e tento fazer ver que nesse sítio onde só ele entra, vale a pena combater.

Todos os dias exijo de mim aprender a respeitar a dimensão de tal sentir e num respeito sério, peço permissão para entrar e o colocar em dúvida. Entrar para lhe retirar o poder de dogma ou verdade absoluta e convencer o seu proprietário de que este sentir o tornou incapaz de decidir. Que este sentir o inibiu de se reunir consigo mesmo durante o tempo que lhe foi necessário para que à traição tomasse posse da sua essência e o aniquilasse a esta sombra de ser. 

E neste respeito pelo adversário, tento ofuscar essa realidade com o brilho de um pensar, de um acreditar, de um querer imenso de que a Vida tem de ser mais do que isso, de que o amanhã tem de ter algo bom. De que alguma inocência, nos ajuda a ter resiliência. E que em respeito à dimensão de tal sentir, temos também de ser igualmente naives para poder seguir. 

Mas, temos de respeitar sem fugir, porque é um crescimento pessoal querer de alguma forma sair de lá. E quase sempre, sai-se de lá...só.

Que se estendam mãos, que se deixem palavras e se dêem abraços...mas o caminho, tem de ter um passo próprio, do próprio, na sua identidade e enquanto ser uno em colaboração consigo mesmo. Tem de ser um caminho trilhado acordado, depois de perceber que não pode mais apenas ficar, estar, entregue à posse violenta de tal agonia.

É um processo de resolução individual, de luta acesa, cruel e desmedida, contra o monstro que cresce e devora. Mas, tem de ser. Essa tem de ser a crença. Tem de ser, porque tem de haver mais, tem de estar algures à nossa espera um estar resultante dessa luta, desse entendimento, dessa dura batalha da qual se sai em farrapos mas capaz de seguir, capaz de acreditar.

Tem de ser...temos de ser capazes de saber que dentro de nós reside a prisão e a libertação, as dores e as asas de sonhos. Temos de saber crer, em nós entidade de força maior, resistente à dor, hibernante, dormente, mas lutadora quando crente. Lutadora quando com Norte. Lutadora por melhor sorte. Temos de crer.

E todos os dias, não falha um, vou vendo tais guerreiros enfrentarem a sua sorte, umas vezes rasgados de dentro, outras à espera de uma brisa que os alimente. E todos os dias, descubro a beleza do ser humano, na sua capacidade intensa de amar e de ser e de eternamente conseguir ser um alguém que sem sombras de si, consegue crescer menino sendo Homem de guerra.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A Amizade são...

A amizade são vestes eternas, que revestem a pele magoada de viver. São brisas de vento cálido, que nos arrefecem as dores das queimaduras da luta pela sobrevivência. São folhas caídas de Outono, que embelezam o chão, fazendo-o tapete para os nossos passos doridos de pés cansados das caminhadas perpétuas.

São olhos tristes, que me beijam a dor, que se transpira na pele farta de proteger as intempéries da vida. São braços fortes, que se dão, sem fim, num aconchego terno, que contém, que afaga, que acaricia a alma, num dar tremendo.

São mãos rugosas, calejadas de suster a nossa respiração, no silêncio de gestos dados ao ar, em pontas de dedos. São mãos jovens, envelhecidas, de papel de seda, que embrulham as lágrimas que não deixam escorrer.

São presentes humanos, revestidos de nomes, com laços de afecto beijados. São presença. São palavras sábias proferidas na hora ou as que ficam guardadas para não ferir. São cuidados continuados, marcados no tempo num espaço de casa que invade o coração.

São mesas fartas ou vazias, juntas na dor ou na celebração. São histórias da memória, unidas por teias que não ganham pó. São espaços sem desculpas, cheios de gratidão, sem obrigadas a não ser por educação. São vestes ricas de puro algodão, criações únicas sem pagar um único tostão.

São politicas sem religião, espaços neutros de pura reflexão. São templos puros de desenvolvimento, de aprendizagem, cheios de admiração. São conquistas diárias numa dança amiga, que nos ensina os passos da melodia antiga. São compromissos sem juras, promessas não proferidas. São viveres de dentro falados nas rugas.

São espaços no ar, na terra, na flor que brota. São presenças nos condimentos do viver. São manta de aconchego ou empurrão para a estrada. A amizade são palavras fundidas, no livro da vida. São barulho, são silêncio, são ausência de comunicação porque está tudo dito.

O amigo é mais que um Deus, porque está e é. É só preciso ter fé...só isso. A amizade não se dá é, só isso, mais nada. Coisa simples e descomplicada. A amizade é gratidão, num amor fraterno entregue e protegido por verbos que não se podem no pretérito conjugar.


terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Deitar a cabeça na almofada...pode ser pesado...

Todos nós levamos o dia a deambular numa certa anestesia societal, a cumprir muitas das nossas metas individuais, a responder aos pedidos laborais, a responder às necessidades financeiras familiares, às necessidades emocionais dos que nos rodeiam, a tentar ser BOM, EFICAZ, COMPETENTE, MELHOR...

Levamos dias, nas suas horas e minutos a existir, em resposta, em reacção a estímulos imperceptíveis, exigentes, contidos em janelas de tempo apertadas e sob grande pressão.

Vivemos sem reflexão atempada ou um saboreamento das nuances da Vida. Mas vivemos em momentos de grande angústia quando nos confrontamos com o nosso eu, na solidão do dia que acaba.

Quando me deito, torno-me quase perfeita. Sonho na mãe que podia ou devia ser, sabendo de cor o que fazer. Vejo-me paciente, tolerante, brincalhona, sorridente, exigente, educadora, mas tudo na medida certa, vejo-me sapiente do conhecimento necessário para ser o melhor de mim nessa função. Mas nessa altura os meus estímulos infantis, dormem, descansam e adoptam em si mesmos, o rosto de anjos que não me desafiam e fazem apenas jorrar de mim todo o amor que lhes tenho, sem nenhum rancor, em paz.

Tantas vezes, n vezes, tal sentimento me levanta da cama...só para os ir ver, aconchegar, beijar no rosto...move-me a culpa de não ter conseguido ser essa versão de mim mesma, defraudada pela impaciência que a Vida faz ebulir dentro de mim. Talvez movida por uma vida de desgaste temporal, que só de vez em quando me liberta para que me aproxime dessa versão aprimorada.

Sonho em ter uma vida em que o tempo se parte, e eu posso ser mulher, companheira, mãe, filha e profissional, com janelas distribuídas de forma justa, sentida, em espelho do que quero e de quem sou, para que veja essa minha essência, para que ela se revele e eu a sinta nos sorrisos que causo. Quero ser mesmo essa. Mesmo!

Quantas vezes no tecto do meu quarto se projectam slides das tarefas que não consegui cumprir no trabalho, das metas pessoais que me movem nessas áreas e que me fazem querer dar mais de mim, mas sentir que não me chego. 

Quantas vezes me perco nessas listas começando a confundir-me com todos os outros projectos que tenho para a minha casa, aquele espaço que batalho para fazer lar a toda a hora e minuto, num trabalho continuado, ingrato porque se recomeça a si mesmo, sem sequer nunca ter findado. Nesses momentos lembro-me que mesmo depois de aspirar a casa duas ou três vezes no mesmo dia, às vezes a casa mostra-me que não atinge perfeição. Poderia refugiar-me em dizer que é uma casa vivida, cheia de amor, podia! Mas, no fundo, batalho também por querer saber equilibrar esse viver doméstico, com graus e parâmetros de exigência que defini dentro de mim e que me fazem sentir sempre uma versão defraudada de mim mesma.

Deitamos-nos idealizando mudanças de dia seguinte, alavancadas em motivações interiores que à noite ganham forma e espaço, pela paz interior, pela tranquilidade com que conseguimos estar connosco mesmos. 

Nessa reflexão um pouco mais sintonizada com a nossa essência em concordância com os nossos sonhos mais pessoais. Nessas instâncias sonhamos acordados e conseguimos desenhar caminhos que nos fazem sentido e criamos espaço para eles dentro das nossas realidades. Mas, os amanhãs trazem a doença do tempo, de pirâmides de prioridades que nos são impostas pelo improviso que a Vida é e, às vezes, rapidamente nos desorientamos relativamente às nossas resoluções, porque novos incêndios se revelam e nós, que tal bombeiros, vamos ao combate de forma instintiva, mecânica...porque a vida já nos amestrou.

Penso a essas horas, nas horas da noite...acordar a malta toda para lhes dizer quanto gosto deles, quanto são importantes para mim, não vá ser este o meu último dia, mas depois desperto-me pensando anestesiada que não há mal, pois amanhã o mais certo é eu estar cá e conseguir recomeçar estes meus jogos de malabarismo entre versões de mim mesma que se forçam a coexistir, em lutas tirânicas que penso resultarem num eu que um dia, talvez um dia, seja realmente a melhor versão de mim num "upgrade" humano mais próximo do ser que eu julgo coabitar comigo.