terça-feira, 17 de janeiro de 2017

É escuro o sofrimento...

No sofrimento não há companhia, não há cheiros bons, não há nada que toque, porque tudo dói. Há uma entrega total à posse de nós por esse sentir, que amargura, que dilacera, que corta de dentro a carne, num lento respirar de quem acha que já não aguenta.

Há uma solidão entranhada de uma incompreensão pela distância imposta de não conseguirmos existir uns dentro dos outros. A verdade de quem sofre não é medida pelo outro, mas sim pelo próprio, numa comparação com dores prévias e na luta com a presença ou ausência de algo chamado fé.

O sofrimento é negro e não anda de mão dada, rejeita, atormenta, isola e perfura. Enche o pensar de frases feitas, desconectas e acutilantes, que se repetem e remoem em si mesmas, numa loucura mais que insana, sedutora da dor e de um sadismo profundo sobre o nosso próprio penar.

Sofrer é fodido, é tramado, é lixado, é só. Sofrer é incompreender.

É perder tudo, não saber nada...é ir tão fundo que não se sente. É não ver, não sentir, não dar, não receber. É desligar constante, rumos de vento. É cicatriz em vez de eu, é sentir desprovido de interpretação. Não se quer histórias porque se sabe os fins. Não se quer fantasia, porque se perde a meninice. Não se quer afago porque não chega. Não se quer nada, exigindo um punhado de tudo, de uma Vida que se revela estranha e ingrata. É ignorância e relutância. É uma eterna impaciência porque o tempo, oh o tempo, esse deixou de ser amigo e permanece em luta de fuga, num tic-tac enervante.

O sofrimento leva a loucuras e à loucura, à perda do eu, da identidade, da vontade. Leva ao cansaço de não acreditar. Escorre pela pele e transforma. Cria inércia, seda, amortece num cansaço profundo que se transforma em estar, que anestesia e se define como ser. É tão dorido que tira o ar, que dói no corpo, que apaga a chama, que massacra o coração. É tão dorido que é dor contínua, tão profundo que não tem cor.

Todos os dias, nem um falha, vejo pessoas em profundo sofrer, algumas já doentes, outras ainda numa batalha sã. E todos os dias digo a mim mesma, relembro-me, que tenho de aprender a perceber este sentir que nos faz ser sombras de nós mesmos.

Todos os dias me digo que tenho de batalhar por ensinar a respeitar a gravidade de tal sentir. Todos os dias travo batalhas com este inimigo invisível, que ninguém quer assumir e dar espaço a, mas que na realidade é um invasor, parasita, usurpador. Todos os dias trabalho com ele, e tento fazer ver que nesse sítio onde só ele entra, vale a pena combater.

Todos os dias exijo de mim aprender a respeitar a dimensão de tal sentir e num respeito sério, peço permissão para entrar e o colocar em dúvida. Entrar para lhe retirar o poder de dogma ou verdade absoluta e convencer o seu proprietário de que este sentir o tornou incapaz de decidir. Que este sentir o inibiu de se reunir consigo mesmo durante o tempo que lhe foi necessário para que à traição tomasse posse da sua essência e o aniquilasse a esta sombra de ser. 

E neste respeito pelo adversário, tento ofuscar essa realidade com o brilho de um pensar, de um acreditar, de um querer imenso de que a Vida tem de ser mais do que isso, de que o amanhã tem de ter algo bom. De que alguma inocência, nos ajuda a ter resiliência. E que em respeito à dimensão de tal sentir, temos também de ser igualmente naives para poder seguir. 

Mas, temos de respeitar sem fugir, porque é um crescimento pessoal querer de alguma forma sair de lá. E quase sempre, sai-se de lá...só.

Que se estendam mãos, que se deixem palavras e se dêem abraços...mas o caminho, tem de ter um passo próprio, do próprio, na sua identidade e enquanto ser uno em colaboração consigo mesmo. Tem de ser um caminho trilhado acordado, depois de perceber que não pode mais apenas ficar, estar, entregue à posse violenta de tal agonia.

É um processo de resolução individual, de luta acesa, cruel e desmedida, contra o monstro que cresce e devora. Mas, tem de ser. Essa tem de ser a crença. Tem de ser, porque tem de haver mais, tem de estar algures à nossa espera um estar resultante dessa luta, desse entendimento, dessa dura batalha da qual se sai em farrapos mas capaz de seguir, capaz de acreditar.

Tem de ser...temos de ser capazes de saber que dentro de nós reside a prisão e a libertação, as dores e as asas de sonhos. Temos de saber crer, em nós entidade de força maior, resistente à dor, hibernante, dormente, mas lutadora quando crente. Lutadora quando com Norte. Lutadora por melhor sorte. Temos de crer.

E todos os dias, não falha um, vou vendo tais guerreiros enfrentarem a sua sorte, umas vezes rasgados de dentro, outras à espera de uma brisa que os alimente. E todos os dias, descubro a beleza do ser humano, na sua capacidade intensa de amar e de ser e de eternamente conseguir ser um alguém que sem sombras de si, consegue crescer menino sendo Homem de guerra.

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