sexta-feira, 2 de março de 2018

Nome? Dores. Na primeira pessoa

Ainda a dormir, num estado letárgico, enumeram-se na minha cabeça, num misto de sonho e de lucidez, uma lista infindável de coisas a fazer. Misturam-se as coisas que são sonhos e projectos, com as coisas básicas do dia-a-dia. Vou despertando e como um comboio a vapor, começo a ganhar energia, alegria, vontade. De dentro, de lá do fundo, brota a gana de querer ir à luta da Vida, bebendo dela com toda a sofreguidão.
Talvez porque sempre fui assim, cheia de vontade de viver a vida. 

Mas de repente, nesse estado de quem acorda, despertam outros sentidos, de peso brutal e do meio de mim começam a surgir as estradas mais escuras e sombrias que coabitam diariamente no meu seio. Viver com a dor. Viver em dor crónica, repetitiva, castrante.
Essas estradas não têm luz, fedem a humidade e nada as areja...quando lá entro, sei de certeza que andarei perdida, às vezes umas horas outras vezes uns dias. Ainda não tenho mapa, tornaram-se presentes no meu mapa de vida já lá vão uns anos e de uma forma pegajosa colam-se à minha realidade, num desejo destrutivo. Desde o seu aparecimento, que tudo se tornou uma luta.

Há uma vida estranha e quase dupla, quando se vive este estar na primeira pessoa. Há
uma partição, uma bipolaridade do eu consoante o caminho que ganha a luta. Há uma dança às vezes perdida, que se articula entre uma música sem som, num grito mudo que se perde na garganta, porque já não nos aguentamos a nós mesmos.
No começo, banalizam-se, justificam-se pelas pequenas asneiras que vamos fazendo, porque se mudou um móvel, porque se abusou nas horas em pé, porque, porque.

Depois começa a estranheza, o questionamento. Porque não passa? Porque não vão embora? Depois procura-se ajuda, passeia-se pelos gabinetes médicos repetindo a história vezes sem conta, na procura de uma resposta, duma orientação, de soluções que nos providenciem qualidade de vida. 

Deparamos-nos com boas pessoas, maus médicos, egos gigantes, ausência de saber, inúmeras tentativas de caminho, mas no virar das estradas mais luminosas que temos dentro de nós espera-nos sempre, sem ritmo, sem previsão, umas das mais bafientas, das mais assustadoras.

E tenta-se, um comprimido aqui, um tratamento acolá, uma massagem assim, umas agulhas aqui e ali. Fala-se das estradas, queixamos-nos do caminho, gritamos, esperneamos, perdemos a calma, a razão, a paciência. Há momentos de sub-solo, de total desnorteamento. E o tempo passa, lânguido, lento e implacável. E repetem-se perguntas, como estás? Como te sentes? E na resposta honesta de descrevermos as estradas, como a merda que são, recebemos estradas de esperança, de alento, que tanto servem o propósito de nos aliviar, se já estamos melhor, como nos cria a revolta de não acreditar em nada do que nos dizem.

Há verdadeiramente dias sem esperança, sem fé, sem nada.

Este não é um fenómeno de crise aguda, é um fenómeno de tortura continuada. Um sublinhar de impotência ou de incapacidade.
E depois vem o tempo, de resignação, de entendimento da besta, por muito que não se saiba de onde nem porquê. Um tempo de calmia, em que se tenta aceitar e planear como é que vamos fazer isto? Desiste-se, atira-se a toalha ao chão, deixamos-nos cair por terra e o resto do mundo que continue, ou arranjamos no nosso âmago respostas que nos ajudem a caminhar as outras estradas, como que esquecidos das que nos assustam e tornam impotentes?

Não é fácil, porque a partir daqui, o processo vai ser cíclico e nem sempre será lógico. Passamos a ser doutorados do planeamento de estradas, dentro das nossas fronteiras. Sabemos muitas vezes mais do que os médicos sobre o que dentro de nós se passa, mas como remanesce a esperança de respostas mais fáceis, do que sermos nós mesmos de mãos vazias a abrir caminho, ocasionalmente caímos de novo e desejamos a resposta milagrosa que teima em não chegar.

E neste caminho tortuoso, temos de encontrar o nosso próprio sentido, a forma de seguir, as técnicas para não demorar por becos e vielas. Aprendemos a gritar, sem voz, a morder a vida em pequenas dentadas, numa gestão diária mas com loucuras pousadas em amanhãs distantes.

Reconhecemos o que nos faz bem ou melhor, passamos a estar em alerta aos sinais que vamos tendo e quando não as vemos (as estradas mofadas) ao virar das esquinas, abusamos e vivemos a vida de forma lambuzada, depois caímos, desaparecemos do mapa, ficamos no chão à espera de qualquer razão para seguir, para nos sabermos levantar e mandar tudo isto à fava. E vamos andando em ciclos ditados pelas nossas próprias forças, pelas nossas próprias ferramentas.


É difícil, pois às vezes só nos apetece falar desta porcaria toda, num desabafo louco que parece carregado da esperança que ao falar alivie. Outros momentos não nos perguntem nada, pois não queremos dar-lhe forma, pois já dói que chegue e não apetece reconhecer a sua existência. Outros momentos nem as temos tão presentes e conseguimos esquecer que a vida dos últimos tempos tem sido uma gestão eficaz de momentos, de intervalos.

Para mim, ter estas estradas, sem fazerem parte do meu mapa, tornou-se crucial. Não lhes dar espaço para ditar a minha vida, e criar momentos em que consigo gerir um esquecimento fingido da sua existência. 
Para mim, na primeira pessoa, resulta ter aprendido a reconhecer o que as alimenta e o que as aniquila. Assim, permito-me a gestão de mim e da minha caminhada, consoante a sua ausência ou presença.
Para mim, resulta ter feito uma recusa ao seu domínio, ainda que tenha muitos momentos em que não mando nada.
Para mim resulta tratá-las por tu, mas não fazer delas minhas convidadas. Recuso-me.

Aprendi também a ter uma postura perante a vida, que me permite dar-lhes bailinho e fugir de lá sempre que possível. Nos dias em que me pesam na alma e me tiram o mapa, combato-as com planos de futuro, com sonhos lindos, com histórias escritas por mim, também elas na primeira pessoa, que me distraem do seu encantamento e tentativa de massacre. 

Nem sempre ganho, mas vou fazendo destes ciclos processos mais conhecidos, mais fáceis, mais loucos, na revolta de não me deixar apagar do meu próprio caminho, por limitações impostas e não pedidas ou desejadas.

Para mim resulta explorar o meu eu aos limites, viver a vida nos detalhes, ver o belo e o positivo. Perder-me nos momentos, como se fossem únicos, como se abastecesse um depósito de energia renovável, que me permite batalhar para encontrar as saídas. Passei a apreciar muito mais o que posso fazer, quando o posso fazer. Passei a dar-me mimos com mais frequência e a tentar gerir o impacto da sua imposição, no dia-a-dia da Vida. Tenho fases. 

Tenho ciclos e opostos. Trabalho no entanto a aceitação deste processo, da ignorância sobre as dores, as suas causas ou tratamentos. Incorporo no meu dia fugas planeadas a esse mundo sombrio, trabalho os meus pensamentos para caminharem fora desse estar, planeio estratégias para quando não estou bem, mantenho a exigência do que quero levar da vida, mas deixei de querer ser um super-ser. Sei os meus limites, as minhas fronteiras, e o que quero conquistar. Por isso luto contra e na primeira pessoa, tento ser topógrafa da minha essência. Se caio, deixo-me ir e planeio o levantar. Se não ando lá por baixo, vivo os momentos sem mapa, mas cheia de luz.

É uma luta, merece reconhecimento de quem está ao lado, apoio e colo especializado. Entendimento das oscilações de estar, paciência para saber esperar que nos encontremos. Merece a mão estendida para que nos levantemos com apoio. Mas acima de tudo, precisa de decisões internas de querermos viver em pleno, ainda que com momentos entre aspas.

Nome?

Eu, por inteiro, no desejo de ser melhor e feliz. 
Eu, na luta diária para encontrar caminhos de vida. 
Eu, pessoa que mesmo dizendo que estou bem, travo lutas sombrias, em ciclos desconhecidos.
Eu, que não me defino pelas dores que tenho.

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