Em todas as famílias há pelo menos sempre um elemento que é uma peça diferente, aquele, que em todos os momentos, está sempre atento ou até mesmo à procura do que o outro gosta, quer, e precisa. São os elementos que parecem constantemente estar atentos a diversas formas de mostrar o amor. Em entregas que às vezes aos olhos dos outros membros da família, não deixam de ser gestos invisíveis.
Aquele gesto de se estar a conduzir a caminho de um compromisso pessoal qualquer, e o filho ou filha ligam, porque precisam que se vá à escola levar um trabalho que se esqueceram, e nós vamos. Estamos nas compras e decidimos o menu do jantar em favor das preferências de um dos elementos da família. Vemos uma promoção qualquer, que interessa a um dos nossos muitos amores e aproveitamos, deixando de comprar aquela outra coisa que queríamos muito para nós, pois o dinheiro não chega. Chegamos a casa, e perdemos 10 minutos a dar o nosso jeitinho à casa, que faz com que o ninho tenha sempre um ar organizado e limpo. Transformamos as refeições do dia, em mimos em forma de comida, escolhas cozinhadas às vezes com lágrimas e amor. Estes seres que pertencem à família fazem-no, na realidade sem esperar uma troca, uma paga, quer fosse em moeda igual, quer fosse numa nova moeda. Não à espera de retribuição real, porque para estes elementos este fenómeno é natural, e quase que impossível de ser travado, acontece naturalmente, numa reação de amor, às observações do quotidiano.
Mas, em conversa com uma amiga, naqueles desabafos de café, e de encontros com a Vida e os sentires, fiz este comentário, que me fez lembrar conversas que já tinha tido com outras mulheres, e até mesmo com alguns homens. Nós somos seres que no nosso dia-a-dia, emitimos cheques sem cobertura a toda a hora, e quanto mais amamos, às vezes mais em dívida ficamos.
É certo que estes elementos familiares, donos de um quási altruísmo, não fazem, ou têm, estes gestos, na expectativa de uma retribuição, mas fazem-no por um amor profundo que resulta de se ser mãe ou pai, marido ou mulher, filho ou filha, e nesses papéis, entregam amor por gestos, de um banco só seu. Mas, o que faz reserva nesse banco, são também os gestos que os outros elementos da família ou das relações de amor, fazem através de - um sorriso, um abraço de reconhecimento, um obrigada, um piscar de olho, um olhar mais intenso que reconhece o esforço por detrás de uma casa limpa, um toque ao de leve no pescoço, um dar de mão apertado, um beijo de fugida ou mais prolongado, um olhar de entrega, ou um jantar especial. Se as retribuições não ocorrem, este banco fica sem reservas mais tarde ou mais cedo, e por muito que a pessoa não faça as coisas com a intenção de ter um retorno material, faz de certeza absoluta, pelo retorno emocional, o amor de entrega.
O problema, é que muitas vezes estas pessoas, estão dadas como garantidas aos seus, e estes por vezes estes, no seu vórtex pessoal, esquecem-se de agradecer, ou de pelo menos reconhecer, e com esta ausência de reinvestimento, no banco, o crash acontece, e o resultado mais grave é que temporariamente este elemento familiar, sente-se como que destroçado, vazio, e a questionar-se porque é que faz o que faz...Pensa em mudar, zanga-se essencialmente consigo mesmo, pois sabe perfeitamente que fez tudo de vontade própria, sem pedidos, e isso, faz com que se sinta ainda mais culpado por sentir esta necessidade desesperada de receber de volta. Faço porque quero, não espero nada, mas em desespero, espero sempre um amor de entrega.
Sente-se, muitas das vezes despedaçado, pois sente que a sua entrega voluntária não recebe de volta, nem sequer o reconhecimento de ser feita, e isso magoa profundamente, criando um vazio interior, fazendo com que o próprio se questione, se assim deve ser, se assim deve continuar, se faz sentido esta entrega sem dúvidas, mas que depois deixa tantas outras por resolver.
No fim destas lutas internas, por norma esta pessoa continua a ser como é, ganha energias em si mesma, ou nuns outros com quem também partilha a Vida, e por vezes sem saber, dão de volta, em pequenos gestos, mas tudo isto não impede que uma certa zanga para com o outro, seja este o companheiro ou filho se instale, e depois, demora um certo tempo até que o equilíbrio interno permita que a entrega continue, e que este papel de agrado ao outro e de emissão de cheques sem balanço se perpetue... E isto é possível, porque a pessoa, dentro de si encontra as verdadeiras razões para estas entregas, e para as energias que se geram destes pensamentos, destas emoções se acumulem, e criem condições que a motivam para este percurso.
Nós só somos capazes de ser esta peça diferente, se tivermos a característica dentro de nós, que nos permite, independentemente do que os outros façam para nos retribuir, ainda que seja nada, continuarmos, a retirarmos prazer do que fazemos e fazermos uma festa de tudo o que fazemos pelos outros. Mas para que esta entrega, que às vezes é desequilibrada, desigual, e muito sofrida, nos faça, equilibrados, felizes e preenchidos por sermos como somos, temos não só de ser um banco para poder então emitir os ditos cheques, mas temos também de ser um banco capaz de fazer investimentos, que no retorno, nos devolvam um juro que nos pague os vazios da entrega.
Temos de descobrir, de forma pessoal, e não dependente dos outros, onde encontrar pequenos investimentos, que ao serem depositados neste nosso banco, nos valorizem de tal modo, que nos permite as energias possíveis e necessárias, para que estas entregas continuem, no entanto cabe-nos a nós também educar, educar no amor...educar a quem nos entregamos destas formas, para que estes percebam que estas entregas por vezes codificadas, têm um simbolismo, carregam, doses infindáveis de afeto e carinho, e são demonstrações dá nossa entrega.
Ensinar o outro a participar de forma natural, entendendo que por momentos, precisamos da entrega deles, da sua própria maneira, nos seus próprios momentos e espaços, mas que precisamos, e que sem ela, nos é muito difícil continuar nesta dádiva vazia. Às vezes precisamos tanto que até temos ciúme de coisas ridículas...há muitos anos atrás, lembro-me de ter ciúme do tempo em que o meu "não marido ainda" , tocava guitarra, pois pareciam ser tempos em que ele não estava comigo, ainda que estivéssemos ali, lado a lado, durante os seus concertos individuais; não percebi o simbolismo, a entrega e a coragem de se revelar em frente a mim, a fã que ele ao fim ao cabo mais receava...travei uma luta, a pedir, que ele parasse para estar comigo, para que se entregasse mais (dizia/pensava eu), com o tempo eu ganhei, ele dedicou-se muito a mim, hoje sou eu que às vezes lhe peço, ou o lembro, para que toque guitarra, para que esse seu amor não morra, mas hoje é raro, e eu arrependo-me, hoje nesse campo sofremos os dois...eu acho que ele sofre, pois perdeu a vontade de o fazer de forma espontânea como fazia, e deixou de ter na guitarra um hobby, um escape, mas vive um certo saudosismo por isso; eu, porque me sinto responsável, porque hoje sei, que na vida há tempo para tudo, e na altura a minha imaturidade me impediu de aceitar os seus símbolos de amor, através de algo que era dele, e especial para ele.
Amar é dar, é receber, é esperar, mas acima de tudo é aprender com o outro, é aprender a viver e conhecer tudo o que o outro nos dá, é aprender a pedir as retribuições, ainda que apenas queiramos "trocados", no entanto, sempre com o cuidado de não estarmos a exigir ao outro, que este se dilua, nos nossos sonhos e expectativas.
Amar é criar um espaço para os dois, um espaço para cada um, e um espaço, onde podem existir os outros, e nenhum pode desaparecer, nenhum pode sofrer, ficando sem lugar para si próprio. E nestes espaços, têm de existir tempos, da mesma maneira, o meu tempo, o teu tempo, o nosso tempo...e se existirem criaturas pequenitas ou granditas, o tempo deles e com eles também.
Quem ganha e adquire esta sapiência, passa cheques, entrega-se, pede, tem tempo para si, ama os outros, dá espaço para que os outros amem de volta...exige se assim tiver de ser, mas não desiste, e pode chegar aqui, àquele momento da Vida, em que a sintonia existe e permite, amar com tranquilidade...
Como diria Florbela Espanca...
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
"Amar é criar um espaço para os dois, um espaço para cada um, e um espaço, onde podem existir os outros, e nenhum pode desaparecer, nenhum pode sofrer, ficando sem lugar para si próprio" - Rosa Amaral
ResponderEliminarNada mais a dizer ; ) Parabéns. Belo Post.
Obrigada pelas palavras de apoio...contam muito, as minhas palavras de nada valem, se não forem lidas e sentidas por alguém.
ResponderEliminare como eu te percebo ...
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