Alguém entra...o ruido é intenso, música toca num local algures na casa, não consigo perceber de onde vem, água corre numa casa-de-banho, a mãe mexe em tachos, o pai chama pelo cão, duas crianças passam a correr e a rir, ouve-se alguém a falar baixo, no fundo de uma sala, ouve-se a televisão, e agora vejo que o rádio toca na cozinha em sintonia com os tacho que preparam a comida. Naquilo que a mim de repente me pareceu uma confusão...como a entrada dos palhaços no circo, carregada de barulho e desorganização, com cada um a fazer mais barulho que o outro, surgiu-me a visão de uma melodia, em que cada instrumento está no seu próprio espaço, tocando parte essencial para a música que eu oiço, e que embora a princípio me tivesse soado a uma cacofonia, agora que presto atenção, oiço melodias, sinto os ritmos, e vejo como tudo decorre numa ordem específica, que não deixa de ter a sua beleza própria.
Não me posso confessar apreciadora de Jazz, mas sei que os princípios básicos são a improvisação, e às vezes os sons produzidos quase que nos podem parecer dissonantes, no entanto, há um ritmo próprio que assegura a ordem na produção da melodia. Nesta casa onde entrei e parei em observação, não ouvi Jazz, pois nada me parecia realmente improvisado, ainda que tudo parecesse acontecer, porque a pessoa, o acontecimento, as palavras, ou outros fenómenos, assim faziam acontecer as sequências de eventos, que a mim me chegavam, como a melodia desta família, neste momento da sua vida.
Momentos destes, nem sempre são melodia, é verdade, às vezes em determinados momentos, podem ser ruídos estridentes, que perfuram o cérebro dos progenitores, fazendo com que possa existir a sensação de que não se aguenta tal ruído, ou que não se vai sobreviver àquele jantar...pois parece que por momentos a loucura se aproxima demais, se avizinha de nós, e nos impede de ver, que no meio desta situação, a melodia não se perdeu, existem é muitos ruídos exteriores que nos impedem de ouvir a parte melódica. Deixamos que a música que vem a tocar dentro de nós, que por vezes nos ensurdece, se confunda com aquela que já estava a tocar em casa...e ai sim, torna-se tudo ensurdecedor, insuportável.
Na família, na vivência da família levamos o tempo todo (nós os educadores), com funções de malabaristas e tentar manter o caos em ordem, os "meninos" entretidos, as bolas todas no ar ao mesmo tempo, e por vezes ainda tentamos o truque de fazer algo mais enquanto as bolas estão no ar, e nós aguardamos a sua descida...e melhor do que toda esta descrição, a parte em que eu nos acho quase que cómicos e partilho da dor dos educadores, pois além de psicóloga também sou mãe, é que tentamos fazer tudo isto, pensando que nos vamos sentir bem, tudo vai correr bem, e no retrato de família, estaremos todos a sorrir, sem nódoas nas roupas e na posição correcta. O grau de exigência e expectativa é tão elevado que perdemos o norte, o horizonte, e passamos a navegar em águas estranhas, a guiarmos-nos por padrões externos a nós, à nossa entidade de família, e trazemos para dentro da nossa tenda de habilidades, a exigência da perfeição de quem não falha, de quem não ri, ou não tem a liberdade de quebrar regras que foram erigidas por uns alguém que não conseguimos nomear.
Ser família, e viver num círculo familiar, o que não deixa de me lembrar, como comparação quase que directa, os desafios impostos a um circo. Se repararem, na maioria dos circos, os espectáculos são assegurados pela família, e é assim que vivem...a vivência de conjunto, a distribuição de funções, para que todos participem no espectáculo, a deixa de cada um, o fazer rir dos disparates dos palhaços, a dificuldade de equilíbrio ou de malabarismo, o ilusionismo, a flexibilidade para com o outro e para com as suas próprias actuações ou necessidades...mas para que este equilíbrio exista, tem de existir um treino, uma sintonia, tiveram de existir muitos desequilíbrios para que novos equilíbrios fossem encontrados, para que a arte de cada um se revelasse. Mas no circo, no meio de tal exigência, no fim de cada espectáculo há uma celebração, há a vitória de mais um feito conquistado, um publico que aplaudiu, uma plateia que os admirou, e não deixou essa admiração cair em silêncio.
E é aqui que muitas das vezes nós círculos familiares nos perdemos, e não conseguimos ser um circo completo...o que talvez também não seja totalmente mau.
Mas na família, nos nossos desequilíbrios, ou nas nossas melodias, às vezes perdemos-nos, e ficamos focados no que correu mal, no que não está bem, amarramos-nos às expectativas que temos, e voamos com elas, tendo a fasquia que impomos aos nossos artistas nesse nível, e tudo o que fique abaixo disso, não sendo satisfatório é causador de infelicidade, de desequilíbrio, de não compreensão, ou até aceitação.
É desejar mais, deixando-nos cegos ao agora, aos momentos que passam de forma veloz, quase imperceptível por nós, de pura beleza e alegria, de entrega dos nossos filhos a nós, momentos em que o riso facilmente brotaria das nossas gargantas, se nos permitíssemos viver sem ser agrilhoados a estas definições impostas, ritmos loucos de exigência, que tornam os nossos desejos quase que incompatíveis. Os equilíbrios surgem, se por momentos permitirmos a análise do nosso círculo e espaço familiar, como se de um circo se tratasse, como se conseguíssemos ter momentos para tudo, mas não esquecendo que pelo meio das actuações mais arriscadas, surgem sempre uns palhaços, ou uns mágicos, que nos permitem ir para um outro espaço, imaginar, rir, fantasiar, e sentir a felicidade da magia, de não saber nada naquele momento, de se acreditar com a inocência das crianças.
Mais, acrescento, nas nossas famílias faltam-nos plateias, que nos aplaudam a todos, que nos digam quando algo está bem feito, fazendo-nos sentir que aquele momento que acabou de acontecer foi especial para todos, sem que de repente, só porque existe uma fasquia, que está lá no alto (sabemos lá nós bem porquê?!), me faça questionar o que não esteve bem, o que falhou, o que faltou, em vez de aplaudir de mãos bem abertas os feitos de quem amo. Em vez, de abrir a boca e dizer o que está bem, em plenos pulmões, e ir reflectir como partilhar o que quero ver mudar ou melhorar.
Os círculos familiares precisam cada vez mais, nos dias que correm, de união, de força, de se sentirem parte de uma equipa com papéis bem definidos, mas em que as linhas de respeito não se perderam, estes mini circos, precisam de muito afecto, de muita orientação, mas acima de muita coisa, precisam que não deixemos que dois momentos simplesmente incompatíveis sejam misturados por um defeito que se contagia, e que nos começa a atingir a todos, parecendo que somos os velhos do Restelo, a agoirar quem se atreve a ir à descoberta, contrariando tudo e todos pela vontade de viver e descobrir o além mar. A felicidade não é compatível em simultâneo com a infelicidade, se estamos felizes, estejamos! Se algo não está bem, vamos ver...
Sejamos pais, educadores de desafio, de papéis e valores bem definidos, mas sempre capazes de nos rirmos com os nossos filhos, e acima de tudo de nos rirmos de nós próprios, sempre capazes de mudar no dia-a-dia, por eles e por nós, para que nos reste alguma inocência infantil, que nos faça acreditar que se nos lançarmos nas caravelas nestas aventuras de hoje, de se ser família, e se viver nestes mares conturbados, havemos de encontrar terra, e o percurso contará sempre mais do que o destino.
Façamos um pacto...que as fasquias estejam onde nós as conseguimos por, e que sejam subidas por nós e mais ninguém, no nosso próprio ritmo, e que a cada subida e degrau, uma festa seja feita, a cada dificuldade e imprevisto, reuniões existam em que todos, como uma equipa, dão o seu melhor para resolver o problema, em que todos se entregam à solução e ao que há a ser feito, e juntos definam quem faz o quê?
E se na fotografia, todos vós estiverem como realmente são, não há fotografia mais bonita, pois além das nódoas, do cabelo desarranjado, ou das caretas do mais novo, vamos todos ver, a essência do vosso circo, e os papéis do vosso espectáculo...vamos todos rir do que nos faz rir, e unirmos-nos por isso, vamos construir no positivo, para criar forças para o desafio. Vamos caminhar..."por mares nunca dantes navegados", e levarmos os nossos desejos a bom porto.
Não oiçam ruído, não deixem! Não oiçam Jazz. Oiçam a melodia, as linhas invisíveis que unem os instrumentos e harmonizam a existência daquilo que é um lar, o Vosso lar!
Eu costumo dizer que a paternidade/maternidade não vem com manual ... mas começo a acreditar que os teus ensinamentos se elevam a um nível bastante superior. E ler-te, ouvindo-te ; ), faz-me acreditar, que poderei ser melhor a cada dia que passa ...
ResponderEliminar... e só por isso, um Enorme Bem Haja para ti. Bjs